quinta-feira, 2 de agosto de 2012

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O dia começa com uma aura negativa que silencia os pássaros da árvore em frente à casa. É preciso entender as rimas de um sonho recorrente em que o desprezo das multidões se sobrepõe às tentativas ritmadas de convívio. Apenas se fala da distância de quem possa incomodar um qualquer negócio ilícito que move tostões e que repartido por todos não incomoda ninguém. Urge encontrar a função precisa do intelecto de cada um de forma a sublimar as potencialidades subjacentes ao que quase ninguém se empenha em praticar: a ajuda desinteressada a quem se ama.

Os sorrisos constantes de Maria durante o dia não podem ser uma dicotomia maior em relação ao início dos dias frios da sua alma. É possível que seja uma cínica num perfeito esconderijo feito de teias perfeitas de onde não consegue escapar com a vida necessária. Outras vezes, em banhos prolongados de puro prazer, acrescidos pela masturbação com que sacia a sua vagina em ardente tentação, procura entender o porquê de não conseguir atingir essa fonte inesgotável de prazer com um homem que simplesmente a deseje. Outras vezes apenas se deixa ir num sonho repleto de estímulos visuais, numa tentação em que apenas a alma funciona e o corpo se reduz à sua natural insignificância.

Maria está desempregada em tempo de crise, sobretudo emocional. Tem projectos a curto prazo que espera ver concretizados, enquanto resiste à tentação de entrar naquelas lojas de roupa onde vá consumir a frustração de um dia-a-dia sem a mais pequena ponta de tesão. De vez em quando olha para o espelho, esperando ver um qualquer fluxo de energia que reduza a sua ansiedade ou simplesmente a leve para a dimensão em que nasceu homem e não tem problemas com o sangue que sai do seu corpo mês após mês. Ainda se pudesse ver realizado o sonho de uma gravidez sem riscos, sentir uma vida crescer dentro de si sem que depois tivesse que a ensinar a ser ainda mais cínica que ela, então produzir-se-ia o milagre dos dias normais, em que o silêncio dos mortais aninhados na sua insignificância seria substituído por enchentes de vida e entendimento implícito.

Quando se senta para tomar o pequeno-almoço, o gato Serafim esfrega-se nas suas pernas nuas, fazendo-a lembrar-se que também ele tem as suas necessidades vitamínicas para dormir melhor o resto do dia. É sempre motivo para deixá-lo subir ao seu colo, enquanto come as torradas quentes, cobertas de uma manteiga especial para emagrecer. E ela tem o peso certo mas gosta de se deixar ir na onda das campanhas dietéticas anti-qualquer coisa, sobretudo do equilíbrio da carteira, porém assim fica feliz.

O gato ronrona enquanto espera pacientemente pela colisão de um pitéu com os seus dentes regularmente afiados. Oportunista e fiel amigo de Maria, que sempre o levará onde quer que vá viver.

Quando vai à janela, encontra-se com o vento na sua cara ainda sem rugas e delicia-se com o frio que rapidamente se entranha no seu corpo. Todos os dias há pedaços de rotina que teima em não mudar, apesar do frio e do calor a encontrarem em dias menos certos que antigamente. Às vezes quase que sente os pés acima do nível do chão, subindo ao encontro dos anjos que a guiam sem que se dê conta da sua presença. Quando, alguns segundos depois, vai buscar a roupa para vestir, desce à Terra e aos propósitos de uma vida cujo fim tem previsto acelerar.

No momento das decisões fecha-se num casulo, sem sequer se preocupar se no mundo para além da vida poderá encontrar esses prazeres carnais que tanto a desesperam quando não os tem. Apenas deixar-se ir na pompa de uma circunstância que precisa atravessar, para não correr o risco do fracasso subjacente à linha imaginária que todos os seus familiares teimam em passar, encontrando a loucura de braços abertos para depois nunca mais a largarem.

Maria tem o seu quê de fé, da crença no Pai de tudo e dos guias do bem e do mal que sempre justificam todos os actos. Não sendo fanática acredita que algumas pessoas têm dons especiais de indicar caminhos correctos e fazer o corpo seguir os caminhos da alma, por mais ínvios que possam parecer. Esse foi um dos motivos que a levou a deixar a sua vida regrada e rotineira, para que possa viver num mundo em que os meios e os fins convivem sem ter a necessidade de foder o próximo.

Sorri, enquanto pensa que o fim desejado se aproxima.

Segue a rotina habitual, enquanto os minutos parecem demorar um pouco mais que o costume. É natural que não esteja feliz de todo, livrou-se do empecilho que lhe dava tranquilidade, mas não alcançou o amor que lhe trave a fuga para outra dimensão. Quer dizer, sendo as mulheres mais conservadoras no que diz respeito à mudança geográfica, Maria teima em não querer esperar, deixando a porta aberta para quem quiser entender o seu próximo passo. E o cansaço dessa espera é tanto que prefere preencher as futuras rugas com algumas experiências que as estiquem quando nada as possa dissimular mais.

Não deixa de ser uma contradição buscar um fim e pensar na doçura possível da própria velhice. Apenas urge mover o corpo rumo àquilo para que foi feito, usar o dinheiro apenas para fazer sobreviver os gostos e as necessidades básicas. Afinal sempre se dispõe a partir em busca da cidade da alegria, onde os pobres só o são quando o espírito quebra.

Depois de dar os últimos retoques na maquilhagem e de apanhar o cabelo excessivamente comprido, pega no Serafim e fala-lhe do que vai ser o seu dia, em tons de enigmas que decifrará à medida que as nuvens forem passando e o ar se tornar rarefeito em sítios insuspeitos. Quando em larga em cima da cama despede-se da comiseração a que se sujeitou durante alguns anos. O gato parece estar-se nas tintas dando o costumeiro miado assim que ela sai do quarto.

Dirige-se para a porta, que nunca fecha à chave, ajeita uma vez mais o cabelo e de olhar vazio despede-se uma vez mais de uma manhã rotineira e sem sabor. Sabe que ao passar aquela porta, vai dar início a uma etapa da vida que não sabe onde vai parar.

O gato adormeceu de novo e ainda assim parece estar tudo bem.

Maria vive no sétimo andar de um prédio embutido no meio de muitos outros, cinzento da sujidade, deixando a nu as energias negativas de um ar excessivamente pesado para as preocupações ligeiras com que a dilacerada classe média assiste à progressiva delapidação dos seus direitos e dinheiro que entrarão directamente na pança dos ladrões do costume.

Fecha a porta, sai para o mundo, vestida em tons alegres, propositadamente contrastantes com os demónios circundantes.

A magia de alguns momentos perde-se sem que Maria se dê conta. Fechou a porta de casa, com Serafim olimpicamente indiferente ao mundo que a sua dona quer ver desbravado.

A vizinha do lado abriu a porta, disse algumas palavras quase imperceptíveis e a cabeça implodiu, ficando uma casca de noz no seu lugar, com um corpo atarantado, como se de um zombie se tratasse. Apenas lhe deu um encontrão, fechou-lhe a porta e já está tudo bem outra vez.

O alarme devia ter tocado, no seu lugar apenas uma imagem possivelmente carregada de símbolos que terá de decifrar num qualquer momento de aperto, em que nada segura. Sorri, quase rindo desbragadamente pela ideia de vacas na mesma situação.

Desce apressadamente as escadas, espera que a cabeça da vizinha não se tenha materializado de novo. 

Escuta passos, sem sabem se vão ou vêm, isso não é motivo para os músculos paralisarem e as sementes virem rotuladas de estéreis, porém os dias são mais curtos e a noite abdicou de ser boa conselheira, ou sequer de sugerir um mero suspiro de alívio por uma qualquer desgraça amanhecida num corpo sequioso.

Maria quer foder, pensando que o amor que a devia consumir, um dia sairá do armário, isso não lhe consome a fome de maneira nenhuma.

Toca uma canção neurótica na sua cabeça. Nunca se preocupou com a tensão, mas agora que lhe falam que tudo se paga, esteja ou não sujeito a tributação, vai ter um pouco mais de atenção às descargas eléctricas naturais, para que possa assistir a um dos muitos holocaustos prometidos num vão de escada, enquanto alguns abutres consomem pedaços mortos de vontade.

Na rádio, que nunca leva, há-de estar a tocar o hit do momento e a dor da sua ausência será nula, como a vontade de deixar o seu corpo passar incólume ao vendaval a que se propôs.

Maria vive num país de oportunidades em falência, onde é vigiada a cada momento pelos arautos da moralidade, como todos os outros que a rodeiam. Abre então a porta da rua e depara-se com o habitual carreiro de formigas, devidamente ordenadas, rumo ao encontro da sua subsistência. Em frente, um amontoado de carros aniquilam a vista para as ainda frondosas árvores que alimentam o desejo de algum meliante as escalar para depois descer na varanda de vizinhos que abrem a porta a toda a gente.

Segue pelas pedras irregulares de um passeio mal cuidado. Lá em cima, o tempo dança sem concertina ao sabor de um Sol que promete aquecer os dias e os ânimos. 

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