domingo, 30 de setembro de 2012

4


Há gente muito má neste mundo. Que Filipe o fique a saber ao olhar para uma faca ensanguentada, nas suas mãos, é algo que o surpreende. Não tem explicação plausível para o que aconteceu e segue o seu caminho como se nada fosse. Entra num bar, pede um whisky e engole-o de um só trago, pede outro e outro e o coração parece acalmar-se. Enquanto isso a febre parece aumentar lá fora, é a polícia que chega ao local do crime. Nada faz para se esconder e o dono do bar oferece-lhe o que resta da garrafa, que hoje é dia de festa! Filipe bebe e já começa a perder a compostura, sorrindo.

A tristeza foi-se embora, apenas ficaram os sentidos mais alerta pela festa de sangue vivenciada nas suas mãos delicadas de citadino. Filipe pega no telefone e liga para uma mulher que conheceu ontem. Uma excitação desenfreada que quer reviver. Mas as manhas do destino refrearão os ímpetos e a vida levá-lo-á pelos caminhos ínvios da traição.

As sementes de Filipe remontam ao tempo da guerra do Vietname, onde nasceu, a escassos metros de uma mina que viria a ser a causa da amputação da perna esquerda da sua mãe, alguns anos mais tarde é claro, enquanto recordava a tremenda aventura que a levara àquele canto do mundo, um dos muitos onde a indústria do armamento vai recolher os seus maléficos lucros.

Filipe apenas recorda pedaços da infância em Lisboa e tudo o que demais se passou em fragmentos ensanguentados. A loucura é um bem quotidiano da sua vida e não fossem as mãos ensanguentadas e incriminatórias, poderia pensar na viagem da sua vida, rumo ao Vietname. Assim, apenas lhe resta zelar pelos desejos anunciados aos quatro ventos em noite de lua- cheia. Curiosamente é noite de lua-cheia e as estrelas esconderam-se atrás da lua. É capaz de ser alguma premonição ou a falta de desejos presentes nas ursas, ou outras constelações mais conhecidas. Apenas sabe que a mulher desejada desnudar-se-á em frente a uma falésia e o amor que daí frutificar poderá esmagar-se contra as rochas.

Não, é improvável que os grandes poetas se reúnam outra vez e, que os supra-sumos da crítica, nos possam electrificar a consciência parada.

Faltam sorrisos, o buraco no estômago enlouquece-o e o sangue ainda corre mais. Falta dominar a loucura que provoca a inacção, doença grave sofrida por quem encontra motivos para falar mal do que apenas vê.
……………………………………………………………………

Vive a traição num dia de intensa chuva. É despedido do trabalho de longa data após ter sido apanhado com a recepcionista em trajes invisíveis na dispensa, junto dos produtos de limpeza. Apesar da desgraça sente-se bem, a mulher espera-o em casa e o jantar será um pitéu dos deuses, como sempre.

Entra no apartamento e apanha-a debaixo de Francisco que a monta desvairadamente. Não se alucina, nem entra em choque, apenas puxa de um cigarro e fica a ver aquele espectáculo inédito na mulher. Despe-se e começa a chupar os pés dela. Ela grita, dá um salto e fica estarrecida. Francisco, ainda com um tesão desmesurado, sorri, enrubescido e suado. Filipe acende um cigarro. Afinal qual o problema? Ela recompõe-se rapidamente, tenta explicar algo e Filipe apenas sorri. Não há problema, os cornos são mútuos, o desleixo e a rotina haviam de dar nestas coisas. A traição foi apenas o desmoronar de uma ilusão de vida perfeita, que ambos sabiam não passar disso mesmo: uma ilusão.

Sem pensar na noção de dignidade, propõe juntar-se ao duo apanhado em flagrante. Francisco começa a masturbar-se e ela beija Filipe. A fêmea, com um ar tremendamente excitado, não consegue esconder o aceleramento cardíaco, que sobe para um ritmo perto do perigoso.

Todos se comem, literalmente. Chega-se a um ponto em que os sexos estão quase sem reacção e ela pede mais, que não parem, que está viva e que quer ir para lá de todos os limites.

Filipe deixou de se preocupar com a traição. Vai à cozinha e traz uma faca de cortar carne, bem afiada, a fim de esventrar os amantes que tratou de amarrar. Francisco assusta-se e ela continua alucinada da excitação e pede-lhe a faca dentro do seu corpo. Filipe dá um passo para trás e pensa se ela não estará possuída por algum demónio.

Filipe corta o pescoço a Francisco provocando uma viagem descontrolada do sangue à suja volta. O amante depressa morre e ela ri-se tentando alcançar o sangue com a língua. Filipe dá-lhe uma marretada na cabeça e ela desmaia para que ele possa fazer o papel de Deus nas calmas.

Limpa aquele cenário, quase dantesco, com uma tranquilidade quase olímpica, corta o cadáver em pedaços e guarda-o em sacos do lixo e ela, apesar de desmaiada, continua a verter líquido da vagina, como se os orgasmos se mantivessem no reino dos sonhos. Não a vai matar, não pode perder aquelas refeições divinas na sua vida, pensa que ela possa voltar à normalidade pré-orgasmo e para isso guarda no mais profundo recanto do seu sub-consciente a vontade de ele próprio trair.

Debaixo de pressão é possível que Filipe não aguentasse tamanho desafio. É muito mais fácil encaixar a realidade de assassino cruel na tranquilidade de um lar, apesar de algumas vezes poder ser interrompido por algum vizinho atacado da última estirpe de gripe, a pedir-lhe para ir ao hospital. Enquanto espera, acende outro cigarro e parece-lhe que a mulher voltou a acordar. É a altura ideal para a matar, mas não o faz porque a ama. Desamarra-a e leva-a para a casa de banho, para longe daquele sítio onde nasceu o novo Filipe.

Quase uma hora depois sai de novo para a rua. A chuva parou, apesar de o ar ainda estar carregado de humidade. Filipe vê para além dos espelhos da alma, encontra um polícia e anuncia-lhe que devia vigiar melhor os exageros provocados pelo excesso de liberdade, que o ideal era o regresso do doutor de outros tempos para que a malta se comportasse. Recebe resposta simpática, mas alguns segundos depois dispara na boca, esmagando-se sob as rodas dianteiras de um autocarro que não conseguiu travar a tempo. Filipe tranquiliza-se com o espectáculo que lhe trespassa os olhos, os pêlos eriçam-se e o arrepio toma o lugar da calma anterior.

Na fronteira da demência consegue dar-se conta de todos os outros que não conseguem sair de um purgatório onde coabitam as almas renegadas de todos os lados. Assusta-se, nunca imaginou que essa história de Deus e do Diabo pudesse ser verdade, que lhe pudesse queimar a carne sem dó nem piedade, prolongando a dor até à expiação do último pecado. Só que o susto é apenas uma ligeira demonstração da sua decepção perante o mundo.

A recém-descoberta frieza mental vai fazer com que Filipe percorra os caminhos ínvios do despotismo, acrescentando egoísmo sem limites à sua personalidade. Nem sequer é viável pensar, numa bala certeira que lhe provoque a morte instantânea, que poderá morrer em paz e assim continue pela eternidade. A liberdade tem um preço brutal e Filipe acabou de se agrilhoar, numa espiral sem fim de desespero e maldade.

Ainda assim é possível alcançar a luz, mesmo bailando nas trevas profundas em que se embrenhou. Nem o Inferno, nem o Paraíso são inexpugnáveis e a sua descida pelo Purgatório enegrecido pela constante dor apenas será revertida quando as pessoas tenham a consciência que é fundamental decidir por elas próprias, por maior que seja o cliché, por maior que seja a dívida externa e a impossibilidade de pagá-la.

Chega então ao último dia da sua vida, armado em omni-potente, fruto colhido nas últimas experiências. Apenas decidiu que será assim. Não poderá ser um país oficialmente em guerra, nem um daqueles de moscas canibais de meninos que desconhecem a vida para além do puro sofrimento. Nada dessas coisas que faz tanta gente brilhar, quando na verdade se está cagando para o assunto.
Passou pela ponte de Lisboa, ou então pela de Chicago, não se recorda, é possivel que tenha sido um sonho e que lhe tenha ficado na retina uma queda repentina, por uma vida repleta de traição e mentiras. Ironias, porque mergulhar sempre o cativou, sobretudo ficando submerso de ondas gigantescas que explodirão alguns centímetros após o seu corpo. Não mencionemos a parte irónica, o código pelo qual agora se rege é feito de impulsos que se tornam uma regra a ser escrupulosamente posta em prática, sem a mais pequena ponta de desvio ao estabelecido.

Então o sonho contém a ponte e um mergulho num rio poluídissimo, à parte dos ossos partidos no contacto violento com a água. Se por acaso sobrevivesse incólume, a água envenenada matá-lo-ia. Morrerá de uma maneira ou de outra, porque não tem capacidades mentais evoluídas ao ponto dee poder subir em vez de descer.

Filipe encontra-se num beco com a mulher. Aproveitam a escuridão de um pequeno recanto e amam-se como nunca o haviam feito. Depois de trocas de olhares, reveladoras de vazio imperceptível, ambos juram promessas de amor, sentindo-se algo estranhos, mas sem saberem o porquê.

Aniquilada a esperança de se separarem pelos erros passados, seguem juntos numa tentativa da mulher de ter ao menos alguém que lhe dê o que ela gosta. Filipe até sorri de pensar no assunto, mas visualiza a sua morte e deixa-a no beco, com o esperma a escorrer das suas cuecas novas. Mas ela vai atrás dele, seja para onde for, nunca se irá separar.

Sem querer imaginar se há nesta dimensão algum sinal do outro mundo que lhe indique onde ele vai fazer a travessia, dá-se conta de um aglomerado que entra num edifício lilás. Pára, não se deixa intrigar e aperta a mão à mulher, dirige-se para o edifício, olha para cima e vê o nome. Não consegue parar de rir-se com a ironia da coisa: 'Acabe com a monotonia, frequente o Ginásio da Ponte'.