Há gente muito má neste
mundo. Que Filipe o fique a saber ao olhar para uma faca
ensanguentada, nas suas mãos, é algo que o surpreende. Não tem
explicação plausível para o que aconteceu e segue o seu caminho
como se nada fosse. Entra num bar, pede um whisky e engole-o de um
só trago, pede outro e outro e o coração parece acalmar-se.
Enquanto isso a febre parece aumentar lá fora, é a polícia que
chega ao local do crime. Nada faz para se esconder e o dono do bar
oferece-lhe o que resta da garrafa, que hoje é dia de festa! Filipe
bebe e já começa a perder a compostura, sorrindo.
A tristeza foi-se embora,
apenas ficaram os sentidos mais alerta pela festa de sangue
vivenciada nas suas mãos delicadas de citadino. Filipe pega no
telefone e liga para uma mulher que conheceu ontem. Uma excitação
desenfreada que quer reviver. Mas as manhas do destino refrearão os
ímpetos e a vida levá-lo-á pelos caminhos ínvios da traição.
As sementes de Filipe
remontam ao tempo da guerra do Vietname, onde nasceu, a escassos
metros de uma mina que viria a ser a causa da amputação da perna
esquerda da sua mãe, alguns anos mais tarde é claro, enquanto
recordava a tremenda aventura que a levara àquele canto do mundo, um
dos muitos onde a indústria do armamento vai recolher os seus
maléficos lucros.
Filipe apenas recorda
pedaços da infância em Lisboa e tudo o que demais se passou em
fragmentos ensanguentados. A loucura é um bem quotidiano da sua vida
e não fossem as mãos ensanguentadas e incriminatórias, poderia
pensar na viagem da sua vida, rumo ao Vietname. Assim, apenas lhe
resta zelar pelos desejos anunciados aos quatro ventos em noite de
lua- cheia. Curiosamente é noite de lua-cheia e as estrelas
esconderam-se atrás da lua. É capaz de ser alguma premonição ou a
falta de desejos presentes nas ursas, ou outras constelações mais
conhecidas. Apenas sabe que a mulher desejada desnudar-se-á em
frente a uma falésia e o amor que daí frutificar poderá esmagar-se
contra as rochas.
Não, é improvável que
os grandes poetas se reúnam outra vez e, que os supra-sumos da
crítica, nos possam electrificar a consciência parada.
Faltam sorrisos, o buraco
no estômago enlouquece-o e o sangue ainda corre mais. Falta dominar
a loucura que provoca a inacção, doença grave sofrida por quem
encontra motivos para falar mal do que apenas vê.
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Vive a traição num dia
de intensa chuva. É despedido do trabalho de longa data após ter
sido apanhado com a recepcionista em trajes invisíveis na dispensa,
junto dos produtos de limpeza. Apesar da desgraça sente-se bem, a
mulher espera-o em casa e o jantar será um pitéu dos deuses, como
sempre.
Entra no apartamento e
apanha-a debaixo de Francisco que a monta desvairadamente. Não se
alucina, nem entra em choque, apenas puxa de um cigarro e fica a ver
aquele espectáculo inédito na mulher. Despe-se e começa a chupar
os pés dela. Ela grita, dá um salto e fica estarrecida. Francisco,
ainda com um tesão desmesurado, sorri, enrubescido e suado. Filipe
acende um cigarro. Afinal qual o problema? Ela recompõe-se
rapidamente, tenta explicar algo e Filipe apenas sorri. Não há
problema, os cornos são mútuos, o desleixo e a rotina haviam de dar
nestas coisas. A traição foi apenas o desmoronar de uma ilusão de
vida perfeita, que ambos sabiam não passar disso mesmo: uma ilusão.
Sem pensar na noção de
dignidade, propõe juntar-se ao duo apanhado em flagrante. Francisco
começa a masturbar-se e ela beija Filipe. A fêmea, com um ar
tremendamente excitado, não consegue esconder o aceleramento
cardíaco, que sobe para um ritmo perto do perigoso.
Todos se comem,
literalmente. Chega-se a um ponto em que os sexos estão quase sem
reacção e ela pede mais, que não parem, que está viva e que quer
ir para lá de todos os limites.
Filipe deixou de se
preocupar com a traição. Vai à cozinha e traz uma faca de cortar
carne, bem afiada, a fim de esventrar os amantes que tratou de
amarrar. Francisco assusta-se e ela continua alucinada da excitação
e pede-lhe a faca dentro do seu corpo. Filipe dá um passo para trás
e pensa se ela não estará possuída por algum demónio.
Filipe corta o pescoço a
Francisco provocando uma viagem descontrolada do sangue à suja
volta. O amante depressa morre e ela ri-se tentando alcançar o
sangue com a língua. Filipe dá-lhe uma marretada na cabeça e ela
desmaia para que ele possa fazer o papel de Deus nas calmas.
Limpa aquele cenário,
quase dantesco, com uma tranquilidade quase olímpica, corta o
cadáver em pedaços e guarda-o em sacos do lixo e ela, apesar de
desmaiada, continua a verter líquido da vagina, como se os orgasmos
se mantivessem no reino dos sonhos. Não a vai matar, não pode
perder aquelas refeições divinas na sua vida, pensa que ela possa
voltar à normalidade pré-orgasmo e para isso guarda no mais
profundo recanto do seu sub-consciente a vontade de ele próprio
trair.
Debaixo de pressão é
possível que Filipe não aguentasse tamanho desafio. É muito mais
fácil encaixar a realidade de assassino cruel na tranquilidade de um
lar, apesar de algumas vezes poder ser interrompido por algum vizinho
atacado da última estirpe de gripe, a pedir-lhe para ir ao hospital.
Enquanto espera, acende outro cigarro e parece-lhe que a mulher
voltou a acordar. É a altura ideal para a matar, mas não o faz
porque a ama. Desamarra-a e leva-a para a casa de banho, para longe
daquele sítio onde nasceu o novo Filipe.
Quase uma hora depois sai
de novo para a rua. A chuva parou, apesar de o ar ainda estar
carregado de humidade. Filipe vê para além dos espelhos da alma,
encontra um polícia e anuncia-lhe que devia vigiar melhor os
exageros provocados pelo excesso de liberdade, que o ideal era o
regresso do doutor de outros tempos para que a malta se comportasse.
Recebe resposta simpática, mas alguns segundos depois dispara na
boca, esmagando-se sob as rodas dianteiras de um autocarro que não
conseguiu travar a tempo. Filipe tranquiliza-se com o espectáculo
que lhe trespassa os olhos, os pêlos eriçam-se e o arrepio toma o
lugar da calma anterior.
Na fronteira da demência
consegue dar-se conta de todos os outros que não conseguem sair de
um purgatório onde coabitam as almas renegadas de todos os lados.
Assusta-se, nunca imaginou que essa história de Deus e do Diabo
pudesse ser verdade, que lhe pudesse queimar a carne sem dó nem
piedade, prolongando a dor até à expiação do último pecado. Só
que o susto é apenas uma ligeira demonstração da sua decepção
perante o mundo.
A recém-descoberta
frieza mental vai fazer com que Filipe percorra os caminhos ínvios
do despotismo, acrescentando egoísmo sem limites à sua
personalidade. Nem sequer é viável pensar, numa bala certeira que
lhe provoque a morte instantânea, que poderá morrer em paz e assim
continue pela eternidade. A liberdade tem um preço brutal e Filipe
acabou de se agrilhoar, numa espiral sem fim de desespero e maldade.
Ainda assim é possível
alcançar a luz, mesmo bailando nas trevas profundas em que se
embrenhou. Nem o Inferno, nem o Paraíso são inexpugnáveis e a sua
descida pelo Purgatório enegrecido pela constante dor apenas será
revertida quando as pessoas tenham a consciência que é fundamental
decidir por elas próprias, por maior que seja o cliché, por maior
que seja a dívida externa e a impossibilidade de pagá-la.
Chega então ao último
dia da sua vida, armado em omni-potente, fruto colhido nas últimas
experiências. Apenas decidiu que será assim. Não poderá ser um
país oficialmente em guerra, nem um daqueles de moscas canibais de
meninos que desconhecem a vida para além do puro sofrimento. Nada
dessas coisas que faz tanta gente brilhar, quando na verdade se está
cagando para o assunto.
Passou pela ponte de
Lisboa, ou então pela de Chicago, não se recorda, é possivel que
tenha sido um sonho e que lhe tenha ficado na retina uma queda
repentina, por uma vida repleta de traição e mentiras. Ironias,
porque mergulhar sempre o cativou, sobretudo ficando submerso de
ondas gigantescas que explodirão alguns centímetros após o seu
corpo. Não mencionemos a parte irónica, o código pelo qual agora
se rege é feito de impulsos que se tornam uma regra a ser
escrupulosamente posta em prática, sem a mais pequena ponta de
desvio ao estabelecido.
Então o sonho contém a
ponte e um mergulho num rio poluídissimo, à parte dos ossos
partidos no contacto violento com a água. Se por acaso sobrevivesse
incólume, a água envenenada matá-lo-ia. Morrerá de uma maneira ou
de outra, porque não tem capacidades mentais evoluídas ao ponto dee
poder subir em vez de descer.
Filipe encontra-se num
beco com a mulher. Aproveitam a escuridão de um pequeno recanto e
amam-se como nunca o haviam feito. Depois de trocas de olhares,
reveladoras de vazio imperceptível, ambos juram promessas de amor,
sentindo-se algo estranhos, mas sem saberem o porquê.
Aniquilada a esperança
de se separarem pelos erros passados, seguem juntos numa tentativa da
mulher de ter ao menos alguém que lhe dê o que ela gosta. Filipe
até sorri de pensar no assunto, mas visualiza a sua morte e deixa-a
no beco, com o esperma a escorrer das suas cuecas novas. Mas ela vai
atrás dele, seja para onde for, nunca se irá separar.
Sem querer imaginar se há
nesta dimensão algum sinal do outro mundo que lhe indique onde ele
vai fazer a travessia, dá-se conta de um aglomerado que entra num
edifício lilás. Pára, não se deixa intrigar e aperta a mão à
mulher, dirige-se para o edifício, olha para cima e vê o nome. Não
consegue parar de rir-se com a ironia da coisa: 'Acabe com a
monotonia, frequente o Ginásio da Ponte'.