O novo Inferno de Dante |
Mortimer escapou por pouco da morte, de uma galopante loucura e das surpresas causadas pelo sangue a jorrar do seu corpo. Está no hospital, algemado, sem saber exactamente porquê e com um amulher atraente a fazer-lhe perguntas. Tem um tom de voz seco, a contrastar com a doçura que parece sair dos seus lábios, perfeitos. Não, não se deixa enganar a mulher não foi ali fazer jogos eróticos, tem que escutá-la, entender o porquê do que se passou até chegar ali.
Algemado. Sente-se com
curiosidade de saber o porquê de tudo o que se passou até chegar
ali.
Algemado. Sente-se com
curiosidade de saber se é por causa de ter reintroduzido as quatro
estações no mundo enquanto entranhava as Quatro Estações de
Vivaldi.
- Não meu caro Mortimer, - diz-lhe, fleumática, a sensual agente da polícia que interroga
- Você é perigoso demais porque põe em prática os seus sonhos.
Então está algemado
pelos sonhos, por querer praticar a liberdade de movimentos, o que
significa que tudo deixou de ser uma mera teoria da conspiração,
para o simples facto de confirmar que sempre o vigiaram.
- Sim, senhora, fui esfaqueado e sou eu que estou aqui preso... talvez se me explicasse... - olhando directamente para aqueles olhos vazios, como se não houvesse alma para os segurar.
- Não importa explicar-lhe que sabemos quem foi, é matéria confidencial e o assunto morre aqui, isto tudo apesar de saber que você é imune à morte.
Mortimer reagiu com
alguma agressividade e a mulher fez um sinal para fora do quarto.
Alguns momentos depois apareceram dois homens, exactamente iguais,
pela óptica de Mortimer. Tomaram o seu lugar, cada um de um lado da
cama e a agente, fria como um glaciar, pegou num pente, levou-o à
cabeça de Mortimer e deu-lhe uso. Ele ficou calado, aceitando as
mudanças de humor na fulana. Os homens cantarolavam uma versão a
capella de «unfinished sympathy», a coisa tornava-se ainda mais
solene quando a vocalista original apareceu, em ponto minúsculo, em
cima da cama de Mortimer.
Mortimer deixou de querer
ser diferente, a sucessão de idiotices que têm acontecido, fazem
com que apenas queira voltar para a sua quinta auto-sustentável.
Refugia-se no silêncio e os três personagens misteriosos esfumam-se
por entre as paredes, deixando o homem entregue a uma lenta e
dolorosa recuperação.
Volta então ao silêncio,
sem ninguém no quarto. Completamente nu, com a ferida a descoberto e
uma comichão louca que o provoca a rasgar os pontos só para ver o
sangue escorrer livre. Mas não consegue, tem apenas de se
concentrar. Possivelmente se o fizer com afinco é provável que tudo
nem passe de um sonho, com desfecho infeliz, porque não consegue
morrer. Apenas consegue entender que o delírio se limita à parte da
roupa, o resto é apenas uma teia intrincada de acontecimentos que o
farão ir às portas do inferno, onde se revelará toda a sua força,
ainda adormecida. Sabe de tudo isso, sem saber como, mas sabe que vai
sair deste quarto para um mundo diferente, despejado da rotineira
normalidade, sem a tranquilidade dos que conseguem controlar a
selvajaria latente nos cérebros domesticados.
Mortimer é um paciente
agitado e por isso coloca-se a possibilidade de um colete-de-forças
que impeça os seus braços de mudar alguma coisa no pequeno espaço
ocupado pelo seu corpo. É por isso que precisa acalmar-se, deixar a
enfermeira gorda e feia fazer o seu serviço com dedicação e
sorrisos sexualmente alterados. O mundo, nisso, parece uma cassete
riscada, onde se sublimam os corpos em detrimento das almas, apesar
da igual perecidade destas.
Voltando mais atrás,
lembra-se que havia um colégio, com regras duras e em que a
manifestação de qualquer tipo de emoções eram motivo para
valentes enxertos de porrada. A alternativa era sempre a mesma, dar
cem voltas ao gigantesco edifício com o espírito enredado numa teia
de loucura inimaginável, acompanhado das «litanies de Satan»,
vociferadas por uma grega tresloucada que tinha como objectivo
denunciar a raça humana perante o anjo caído. Mortimer
experimentara as duas vertentes de tortura e no final da nonagésima
volta, seguiu em frente rumo a outro tipo de existência, feita de
vontade própria e com pessoas carregadas de tesão pela vida.
Voltando ao presente
descobriam-se novas formas de tortura com o anúncio de novos cortes
na saúde, pelo governo em pose de punheta autoritária a ponto de
expelir algo feio.
Resulta disto tudo que
Mortimer vai sair do hospital hoje mesmo, apesar das indicações de
repouso absoluto. Antes de sair passará pela cozinha e levará a
faca de cortar carne. Passará pelo gabinete do Dr. Morte e enfiará
o instrumento cortante pela cabeça abaixo. Diz-se que o vetusto
médico já passou por pior, rezando a lenda que detém um recorde
macabro de facadas que nunca atingiram um orgão vital.
Mortimer fez o que queria
e saiu para a rua, vestido com a bata branca algo manchada de sangue.
Sente-se mal, as dores superaramn o êxtase de loucura que o
acometeram antes do desastre.
Por todo o lado depara-se
com pessoas iradas, raiando um vermelho brutal dos olhos quase a
saírem das órbitas. O Céu está negro e os motores destruídos dos
aviões antigos sobrepôem-se às bombas lançadas em simultâneo,
suspensas num tempo que deixou de seguir como sempre seguiu. Os
plícias, de arma em punho, dão uso a um megafone, aconselhando os
seguidores do governo a descerem pelos tampos do esgoto. Dizem eles
que apesar das doenças e do cheiro nauseabundo um mundo melhor os
espera, Mortimer procura o caminho de volta para a quinta. Pensa ele
que enquanto as bombas se mantiveremk em suspenso tudo é possível e
o mundo até pode acabar aos abraços, num bar irlandês, com cerveja
preta a rodos para todos.
Anda, cada vez com mais
dificuldade, tenta abstrair-se dos seres que vão descendo pelo
esgoto, em poses de desespero teatral, quando a vida é bastante mais
profunda que seguir as pisadas de um qualquer pastor com dons de
domar carneiros.
Procura pelo amor que
possa estar nos que o rodeiam. Enquanto isso as velas no cimo de cada
edifício vão ardendo, consumindo a beleza dos anjos, desnorteados
pelo trabalho sujo dos demónios.
À sua volta apenas
pessoas abstraídas da sua vontade própria. Talvez a dor aumente por
causa disso. O ser humano de tanta possibilidade que lhe é posta ao
dispor para ser feliz, procura sempre a alegria nos espinhos
putrefactos que alguns iluminados lhes destinam, sendo, por isso,
conduzidos ao esquecimento.
Vão todos em fila para o
esgoto, que lhes traz a ilusão de algum descanso da violentação a
que sempre os sujeitaram, dizendo-lhes que se querem ser felizes tem
de ser pela vontade imposta por lei. Mortimer pratica o oposto, mas
só demonstra o caminho certo a quem se dispuser a usar a visão para
aquilo que ela serve. À sua volta, começam a aparecer algumas
pessoas, em silêncio, sorrindo-lhe. Os pensamentos transmitem-se
naturalmente e os fluídos geram a energia positiva necessária para
criar uma barreira aos demónios tresloucados que tentam demover, sem
êxito, os caminhantes da normalidade alternativa ao governo
prepotente.
Os olhares cruzam-se, as
vidas são o que quiserem fazer delas, mas junto de Mortimer apenas
há a vontade de chegar à quinta antes que o tempo volte ao seu
curso normal e as bombas comecem a sua função destruídora.
Um pouco mais à frente,
num sítio qualquer, encontram um animado grupo de demónios que vão
lançando, todos os incautos que podem, em abismos sem fundo. Afirmam
eles tratar-se de uma promoção especial em que todos se livrarão
dos problemas crónicos que reinam nas suas vidas. E afiançam ainda
que quem entrar primeiro beneficiará de uma surpresa inesquecível.
Mortimer e os seus
crfescentes seguidores seguem em frente, com a mesma dor de não
poder haver cura para tantas almas em combustão. Dor essa facilmente
compensada a cada novo seguidor que se junta à celebração da vida,
em que cada um faz o que quer sem ter de lembrar-se que, sendo o
topo da cadeia alimentar, não tem de usar essa celebração para
destruir o mundo que lhe foi oferecido para viver. Ele sabe que esse
é um desejo fragilizado pelo ódio, a que não consegue fugir,
apenas esquecê-lo em prol de um qualquer paraíso que sirva para
esquecer a destruição.
Em cada bomba suspensa,
arde uma traição de cada ser perecido e enviado para os fossos do
anjo Lúcifer. O ódio é sempre crescente e os anjos não conseguem
abrandar essa loucura, terão de ser alguns escolhidos a fazê-lo,
com a natural tendência de alguns para mandar e de quase todos para
serem soldados.
O ideal seria viver
noutro mundo, deixar as bombas cair e seguir à mesma para a mística
quinta, que não deverá passar de uma mera fata morgana.