segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

5

O novo Inferno de Dante

Mortimer escapou por pouco da morte, de uma galopante loucura e das surpresas causadas pelo sangue a jorrar do seu corpo. Está no hospital, algemado, sem saber exactamente porquê e com um amulher atraente a fazer-lhe perguntas. Tem um tom de voz seco, a contrastar com a doçura que parece sair dos seus lábios, perfeitos. Não, não se deixa enganar a mulher não foi ali fazer jogos eróticos, tem que escutá-la, entender o porquê do que se passou até chegar ali.

Algemado. Sente-se com curiosidade de saber o porquê de tudo o que se passou até chegar ali.

Algemado. Sente-se com curiosidade de saber se é por causa de ter reintroduzido as quatro estações no mundo enquanto entranhava as Quatro Estações de Vivaldi.

  • Não meu caro Mortimer, - diz-lhe, fleumática, a sensual agente da polícia que interroga
  • Você é perigoso demais porque põe em prática os seus sonhos.

Então está algemado pelos sonhos, por querer praticar a liberdade de movimentos, o que significa que tudo deixou de ser uma mera teoria da conspiração, para o simples facto de confirmar que sempre o vigiaram.

  • Sim, senhora, fui esfaqueado e sou eu que estou aqui preso... talvez se me explicasse... - olhando directamente para aqueles olhos vazios, como se não houvesse alma para os segurar.
  • Não importa explicar-lhe que sabemos quem foi, é matéria confidencial e o assunto morre aqui, isto tudo apesar de saber que você é imune à morte.

Mortimer reagiu com alguma agressividade e a mulher fez um sinal para fora do quarto. Alguns momentos depois apareceram dois homens, exactamente iguais, pela óptica de Mortimer. Tomaram o seu lugar, cada um de um lado da cama e a agente, fria como um glaciar, pegou num pente, levou-o à cabeça de Mortimer e deu-lhe uso. Ele ficou calado, aceitando as mudanças de humor na fulana. Os homens cantarolavam uma versão a capella de «unfinished sympathy», a coisa tornava-se ainda mais solene quando a vocalista original apareceu, em ponto minúsculo, em cima da cama de Mortimer.

Mortimer deixou de querer ser diferente, a sucessão de idiotices que têm acontecido, fazem com que apenas queira voltar para a sua quinta auto-sustentável. Refugia-se no silêncio e os três personagens misteriosos esfumam-se por entre as paredes, deixando o homem entregue a uma lenta e dolorosa recuperação.

Volta então ao silêncio, sem ninguém no quarto. Completamente nu, com a ferida a descoberto e uma comichão louca que o provoca a rasgar os pontos só para ver o sangue escorrer livre. Mas não consegue, tem apenas de se concentrar. Possivelmente se o fizer com afinco é provável que tudo nem passe de um sonho, com desfecho infeliz, porque não consegue morrer. Apenas consegue entender que o delírio se limita à parte da roupa, o resto é apenas uma teia intrincada de acontecimentos que o farão ir às portas do inferno, onde se revelará toda a sua força, ainda adormecida. Sabe de tudo isso, sem saber como, mas sabe que vai sair deste quarto para um mundo diferente, despejado da rotineira normalidade, sem a tranquilidade dos que conseguem controlar a selvajaria latente nos cérebros domesticados.

Mortimer é um paciente agitado e por isso coloca-se a possibilidade de um colete-de-forças que impeça os seus braços de mudar alguma coisa no pequeno espaço ocupado pelo seu corpo. É por isso que precisa acalmar-se, deixar a enfermeira gorda e feia fazer o seu serviço com dedicação e sorrisos sexualmente alterados. O mundo, nisso, parece uma cassete riscada, onde se sublimam os corpos em detrimento das almas, apesar da igual perecidade destas.

Voltando mais atrás, lembra-se que havia um colégio, com regras duras e em que a manifestação de qualquer tipo de emoções eram motivo para valentes enxertos de porrada. A alternativa era sempre a mesma, dar cem voltas ao gigantesco edifício com o espírito enredado numa teia de loucura inimaginável, acompanhado das «litanies de Satan», vociferadas por uma grega tresloucada que tinha como objectivo denunciar a raça humana perante o anjo caído. Mortimer experimentara as duas vertentes de tortura e no final da nonagésima volta, seguiu em frente rumo a outro tipo de existência, feita de vontade própria e com pessoas carregadas de tesão pela vida.

Voltando ao presente descobriam-se novas formas de tortura com o anúncio de novos cortes na saúde, pelo governo em pose de punheta autoritária a ponto de expelir algo feio.

Resulta disto tudo que Mortimer vai sair do hospital hoje mesmo, apesar das indicações de repouso absoluto. Antes de sair passará pela cozinha e levará a faca de cortar carne. Passará pelo gabinete do Dr. Morte e enfiará o instrumento cortante pela cabeça abaixo. Diz-se que o vetusto médico já passou por pior, rezando a lenda que detém um recorde macabro de facadas que nunca atingiram um orgão vital.

Mortimer fez o que queria e saiu para a rua, vestido com a bata branca algo manchada de sangue. Sente-se mal, as dores superaramn o êxtase de loucura que o acometeram antes do desastre.

Por todo o lado depara-se com pessoas iradas, raiando um vermelho brutal dos olhos quase a saírem das órbitas. O Céu está negro e os motores destruídos dos aviões antigos sobrepôem-se às bombas lançadas em simultâneo, suspensas num tempo que deixou de seguir como sempre seguiu. Os plícias, de arma em punho, dão uso a um megafone, aconselhando os seguidores do governo a descerem pelos tampos do esgoto. Dizem eles que apesar das doenças e do cheiro nauseabundo um mundo melhor os espera, Mortimer procura o caminho de volta para a quinta. Pensa ele que enquanto as bombas se mantiveremk em suspenso tudo é possível e o mundo até pode acabar aos abraços, num bar irlandês, com cerveja preta a rodos para todos.

Anda, cada vez com mais dificuldade, tenta abstrair-se dos seres que vão descendo pelo esgoto, em poses de desespero teatral, quando a vida é bastante mais profunda que seguir as pisadas de um qualquer pastor com dons de domar carneiros.

Procura pelo amor que possa estar nos que o rodeiam. Enquanto isso as velas no cimo de cada edifício vão ardendo, consumindo a beleza dos anjos, desnorteados pelo trabalho sujo dos demónios.

À sua volta apenas pessoas abstraídas da sua vontade própria. Talvez a dor aumente por causa disso. O ser humano de tanta possibilidade que lhe é posta ao dispor para ser feliz, procura sempre a alegria nos espinhos putrefactos que alguns iluminados lhes destinam, sendo, por isso, conduzidos ao esquecimento.

Vão todos em fila para o esgoto, que lhes traz a ilusão de algum descanso da violentação a que sempre os sujeitaram, dizendo-lhes que se querem ser felizes tem de ser pela vontade imposta por lei. Mortimer pratica o oposto, mas só demonstra o caminho certo a quem se dispuser a usar a visão para aquilo que ela serve. À sua volta, começam a aparecer algumas pessoas, em silêncio, sorrindo-lhe. Os pensamentos transmitem-se naturalmente e os fluídos geram a energia positiva necessária para criar uma barreira aos demónios tresloucados que tentam demover, sem êxito, os caminhantes da normalidade alternativa ao governo prepotente.

Os olhares cruzam-se, as vidas são o que quiserem fazer delas, mas junto de Mortimer apenas há a vontade de chegar à quinta antes que o tempo volte ao seu curso normal e as bombas comecem a sua função destruídora.

Um pouco mais à frente, num sítio qualquer, encontram um animado grupo de demónios que vão lançando, todos os incautos que podem, em abismos sem fundo. Afirmam eles tratar-se de uma promoção especial em que todos se livrarão dos problemas crónicos que reinam nas suas vidas. E afiançam ainda que quem entrar primeiro beneficiará de uma surpresa inesquecível.

Mortimer e os seus crfescentes seguidores seguem em frente, com a mesma dor de não poder haver cura para tantas almas em combustão. Dor essa facilmente compensada a cada novo seguidor que se junta à celebração da vida, em que cada um faz o que quer sem ter de lembrar-se que, sendo o topo da cadeia alimentar, não tem de usar essa celebração para destruir o mundo que lhe foi oferecido para viver. Ele sabe que esse é um desejo fragilizado pelo ódio, a que não consegue fugir, apenas esquecê-lo em prol de um qualquer paraíso que sirva para esquecer a destruição.

Em cada bomba suspensa, arde uma traição de cada ser perecido e enviado para os fossos do anjo Lúcifer. O ódio é sempre crescente e os anjos não conseguem abrandar essa loucura, terão de ser alguns escolhidos a fazê-lo, com a natural tendência de alguns para mandar e de quase todos para serem soldados.

O ideal seria viver noutro mundo, deixar as bombas cair e seguir à mesma para a mística quinta, que não deverá passar de uma mera fata morgana.










domingo, 30 de setembro de 2012

4


Há gente muito má neste mundo. Que Filipe o fique a saber ao olhar para uma faca ensanguentada, nas suas mãos, é algo que o surpreende. Não tem explicação plausível para o que aconteceu e segue o seu caminho como se nada fosse. Entra num bar, pede um whisky e engole-o de um só trago, pede outro e outro e o coração parece acalmar-se. Enquanto isso a febre parece aumentar lá fora, é a polícia que chega ao local do crime. Nada faz para se esconder e o dono do bar oferece-lhe o que resta da garrafa, que hoje é dia de festa! Filipe bebe e já começa a perder a compostura, sorrindo.

A tristeza foi-se embora, apenas ficaram os sentidos mais alerta pela festa de sangue vivenciada nas suas mãos delicadas de citadino. Filipe pega no telefone e liga para uma mulher que conheceu ontem. Uma excitação desenfreada que quer reviver. Mas as manhas do destino refrearão os ímpetos e a vida levá-lo-á pelos caminhos ínvios da traição.

As sementes de Filipe remontam ao tempo da guerra do Vietname, onde nasceu, a escassos metros de uma mina que viria a ser a causa da amputação da perna esquerda da sua mãe, alguns anos mais tarde é claro, enquanto recordava a tremenda aventura que a levara àquele canto do mundo, um dos muitos onde a indústria do armamento vai recolher os seus maléficos lucros.

Filipe apenas recorda pedaços da infância em Lisboa e tudo o que demais se passou em fragmentos ensanguentados. A loucura é um bem quotidiano da sua vida e não fossem as mãos ensanguentadas e incriminatórias, poderia pensar na viagem da sua vida, rumo ao Vietname. Assim, apenas lhe resta zelar pelos desejos anunciados aos quatro ventos em noite de lua- cheia. Curiosamente é noite de lua-cheia e as estrelas esconderam-se atrás da lua. É capaz de ser alguma premonição ou a falta de desejos presentes nas ursas, ou outras constelações mais conhecidas. Apenas sabe que a mulher desejada desnudar-se-á em frente a uma falésia e o amor que daí frutificar poderá esmagar-se contra as rochas.

Não, é improvável que os grandes poetas se reúnam outra vez e, que os supra-sumos da crítica, nos possam electrificar a consciência parada.

Faltam sorrisos, o buraco no estômago enlouquece-o e o sangue ainda corre mais. Falta dominar a loucura que provoca a inacção, doença grave sofrida por quem encontra motivos para falar mal do que apenas vê.
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Vive a traição num dia de intensa chuva. É despedido do trabalho de longa data após ter sido apanhado com a recepcionista em trajes invisíveis na dispensa, junto dos produtos de limpeza. Apesar da desgraça sente-se bem, a mulher espera-o em casa e o jantar será um pitéu dos deuses, como sempre.

Entra no apartamento e apanha-a debaixo de Francisco que a monta desvairadamente. Não se alucina, nem entra em choque, apenas puxa de um cigarro e fica a ver aquele espectáculo inédito na mulher. Despe-se e começa a chupar os pés dela. Ela grita, dá um salto e fica estarrecida. Francisco, ainda com um tesão desmesurado, sorri, enrubescido e suado. Filipe acende um cigarro. Afinal qual o problema? Ela recompõe-se rapidamente, tenta explicar algo e Filipe apenas sorri. Não há problema, os cornos são mútuos, o desleixo e a rotina haviam de dar nestas coisas. A traição foi apenas o desmoronar de uma ilusão de vida perfeita, que ambos sabiam não passar disso mesmo: uma ilusão.

Sem pensar na noção de dignidade, propõe juntar-se ao duo apanhado em flagrante. Francisco começa a masturbar-se e ela beija Filipe. A fêmea, com um ar tremendamente excitado, não consegue esconder o aceleramento cardíaco, que sobe para um ritmo perto do perigoso.

Todos se comem, literalmente. Chega-se a um ponto em que os sexos estão quase sem reacção e ela pede mais, que não parem, que está viva e que quer ir para lá de todos os limites.

Filipe deixou de se preocupar com a traição. Vai à cozinha e traz uma faca de cortar carne, bem afiada, a fim de esventrar os amantes que tratou de amarrar. Francisco assusta-se e ela continua alucinada da excitação e pede-lhe a faca dentro do seu corpo. Filipe dá um passo para trás e pensa se ela não estará possuída por algum demónio.

Filipe corta o pescoço a Francisco provocando uma viagem descontrolada do sangue à suja volta. O amante depressa morre e ela ri-se tentando alcançar o sangue com a língua. Filipe dá-lhe uma marretada na cabeça e ela desmaia para que ele possa fazer o papel de Deus nas calmas.

Limpa aquele cenário, quase dantesco, com uma tranquilidade quase olímpica, corta o cadáver em pedaços e guarda-o em sacos do lixo e ela, apesar de desmaiada, continua a verter líquido da vagina, como se os orgasmos se mantivessem no reino dos sonhos. Não a vai matar, não pode perder aquelas refeições divinas na sua vida, pensa que ela possa voltar à normalidade pré-orgasmo e para isso guarda no mais profundo recanto do seu sub-consciente a vontade de ele próprio trair.

Debaixo de pressão é possível que Filipe não aguentasse tamanho desafio. É muito mais fácil encaixar a realidade de assassino cruel na tranquilidade de um lar, apesar de algumas vezes poder ser interrompido por algum vizinho atacado da última estirpe de gripe, a pedir-lhe para ir ao hospital. Enquanto espera, acende outro cigarro e parece-lhe que a mulher voltou a acordar. É a altura ideal para a matar, mas não o faz porque a ama. Desamarra-a e leva-a para a casa de banho, para longe daquele sítio onde nasceu o novo Filipe.

Quase uma hora depois sai de novo para a rua. A chuva parou, apesar de o ar ainda estar carregado de humidade. Filipe vê para além dos espelhos da alma, encontra um polícia e anuncia-lhe que devia vigiar melhor os exageros provocados pelo excesso de liberdade, que o ideal era o regresso do doutor de outros tempos para que a malta se comportasse. Recebe resposta simpática, mas alguns segundos depois dispara na boca, esmagando-se sob as rodas dianteiras de um autocarro que não conseguiu travar a tempo. Filipe tranquiliza-se com o espectáculo que lhe trespassa os olhos, os pêlos eriçam-se e o arrepio toma o lugar da calma anterior.

Na fronteira da demência consegue dar-se conta de todos os outros que não conseguem sair de um purgatório onde coabitam as almas renegadas de todos os lados. Assusta-se, nunca imaginou que essa história de Deus e do Diabo pudesse ser verdade, que lhe pudesse queimar a carne sem dó nem piedade, prolongando a dor até à expiação do último pecado. Só que o susto é apenas uma ligeira demonstração da sua decepção perante o mundo.

A recém-descoberta frieza mental vai fazer com que Filipe percorra os caminhos ínvios do despotismo, acrescentando egoísmo sem limites à sua personalidade. Nem sequer é viável pensar, numa bala certeira que lhe provoque a morte instantânea, que poderá morrer em paz e assim continue pela eternidade. A liberdade tem um preço brutal e Filipe acabou de se agrilhoar, numa espiral sem fim de desespero e maldade.

Ainda assim é possível alcançar a luz, mesmo bailando nas trevas profundas em que se embrenhou. Nem o Inferno, nem o Paraíso são inexpugnáveis e a sua descida pelo Purgatório enegrecido pela constante dor apenas será revertida quando as pessoas tenham a consciência que é fundamental decidir por elas próprias, por maior que seja o cliché, por maior que seja a dívida externa e a impossibilidade de pagá-la.

Chega então ao último dia da sua vida, armado em omni-potente, fruto colhido nas últimas experiências. Apenas decidiu que será assim. Não poderá ser um país oficialmente em guerra, nem um daqueles de moscas canibais de meninos que desconhecem a vida para além do puro sofrimento. Nada dessas coisas que faz tanta gente brilhar, quando na verdade se está cagando para o assunto.
Passou pela ponte de Lisboa, ou então pela de Chicago, não se recorda, é possivel que tenha sido um sonho e que lhe tenha ficado na retina uma queda repentina, por uma vida repleta de traição e mentiras. Ironias, porque mergulhar sempre o cativou, sobretudo ficando submerso de ondas gigantescas que explodirão alguns centímetros após o seu corpo. Não mencionemos a parte irónica, o código pelo qual agora se rege é feito de impulsos que se tornam uma regra a ser escrupulosamente posta em prática, sem a mais pequena ponta de desvio ao estabelecido.

Então o sonho contém a ponte e um mergulho num rio poluídissimo, à parte dos ossos partidos no contacto violento com a água. Se por acaso sobrevivesse incólume, a água envenenada matá-lo-ia. Morrerá de uma maneira ou de outra, porque não tem capacidades mentais evoluídas ao ponto dee poder subir em vez de descer.

Filipe encontra-se num beco com a mulher. Aproveitam a escuridão de um pequeno recanto e amam-se como nunca o haviam feito. Depois de trocas de olhares, reveladoras de vazio imperceptível, ambos juram promessas de amor, sentindo-se algo estranhos, mas sem saberem o porquê.

Aniquilada a esperança de se separarem pelos erros passados, seguem juntos numa tentativa da mulher de ter ao menos alguém que lhe dê o que ela gosta. Filipe até sorri de pensar no assunto, mas visualiza a sua morte e deixa-a no beco, com o esperma a escorrer das suas cuecas novas. Mas ela vai atrás dele, seja para onde for, nunca se irá separar.

Sem querer imaginar se há nesta dimensão algum sinal do outro mundo que lhe indique onde ele vai fazer a travessia, dá-se conta de um aglomerado que entra num edifício lilás. Pára, não se deixa intrigar e aperta a mão à mulher, dirige-se para o edifício, olha para cima e vê o nome. Não consegue parar de rir-se com a ironia da coisa: 'Acabe com a monotonia, frequente o Ginásio da Ponte'.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

3


O ritual é quase sempre o mesmo, trata-se de rotina e de bocejos que podem levar ao silêncio definitivo. A solução será sempre a de saciar a alma com alguma idiotice elevada a salvação do próprio universo, preenchendo-o com uma vontade renovada de viver.

A cada passo que Maria dá depara-se com uma imensidão de projectos por cumprir, filosofias baratas com lucros chorudos e uma dessincronizada nascença de seres que crescerão a pensar num qualquer Apocalipse. 

Ela nem se dá conta do simples que seria clarificar atitudes erradicando os dejectos que permitem a sustentabilidade dos demónios, outrora meros humanos de básica concepção, vida regrada e frustração constante apesar de obliterada da força de vontade para a erradicar.

O passeio quase sempre tem o cheiro a merda de cão e a outro tipo de detritos que sempre incomodam mas ninguém corre a limpar. Ainda assim sente-se confortável no seu corpo, forte objecto do desejo que quer normalizar.

Maria não partilha da ideia de ser a puta do Estado, o qual lhe cobra os mais variados tipos de impostos quer queira ou não e ela de sorrisinho limpo a trabalhar para não ter direito a nada quando reformar o corpo. Ainda tem no sangue a vontade de lutar contra o óbvio e foder apenas porque tem vontade para isso, sem que um cinzento cidadão venha cobrar-lhe qualquer taxa de emissão de fluídos corporais motivados por excessiva actividade sexual, taxa essa agravada em caso de orgasmo e excessiva libertação de energia sem que a mesma possa ser aproveitada para fins comerciais. Não, ainda tem essa capacidade pouco estimulada de gozar com quem a tenta comer a sangue frio e abre as pernas para quem lhe apetece, não para quem quer.

Segue caminho rumo à rotunda onde vive uma velha desgastada pela falta de discernimento dos que a rodeiam. Como quase sempre, olha para a varanda esperando ouvir uns quantos impropérios contra o filho da puta do marido que lhe bateu a vida toda. Talvez a loucura devesse pagar imposto, extensivo aos descendentes. Gostava que aparecesse um vampiro que lhe sugasse o sangue até à última gota com o intuito de se tornar como tantos outros, obcecados com as ninharias que povoam as suas vidas, porém, apenas se depara com uma horda de carros recheados de pescoços na mesma condição, à espera do rei vampiro para serem felizes no mar de merda que circunda as suas vidas. Ajeita o cabelo e sorri para um mendigo a quem dá uma nota cor-de-rosa. Houvesse a necessidade premente de todos começarem de novo e as crises apenas seriam um mero pedaço de cristal prestes a ser quebrado.

Maria vive num Outono pesado, com vistas para o Inverno carregado de nuvens negras em que apenas o mar revolto e misterioso pode indiciar sinais de uma vida que nunca parece presente para transmitir felicidade sem ser pela via do consumismo desenfreado.

A culpa é algo que a afligiu num passado recente, bem como os orgasmos fingidos para não traumatizar os artistas talentosos com quem trocou fluídos corporais. Agora, apenas se preocupa com o combóio que chegará daqui a uns minutos. Nem o facto de ser cobiçada por masturbadores profissionais a desvia desse propósito, que a levará nem Deus sabe onde. Caminha decidida, enquanto o Serafim dorme despreocupado, numa casa plena de segredos ímpios.

Oxalá Jesus fosse vivo e as montanhas tivessem o elixir da felicidade na descida íngreme rumo a qualquer coisa diferente.

Num sonho distante afiguram-se-lhe corpos mutilados pela pressa de não chegar tarde, as entranhas já se revolveram na distância de memórias pensadas, como se fosse possível planificar o onírico. Apenas deseja chegar ao destino sem percalços, porém algo lhe di que nunca mais será assim. Ainda bem, pensa.

O combóio pára, os autómatos de sempre acotovelam-se para entrar mesmo antes dos autómatos que querem sair. Saem palavrões automatizados, lamúrias de um egoísmo automatizado que nem sentem, apenas despejam em cima das suas cruzes apodrecidas pela ausência de vontade.

Lá no topo do mundo, onde quem manda tudo muda, já está decidido um rumo eterno de sacrifícios aos que aguentem, a morte aos que não consigam.

Maria entra, mais tranquila que nunca e senta-se, fechando os olhos ao Apocalipse intelectual que a envolve. Na verdade apetece-lhe foder, perder a vergonha automatizada e saltar para cima de um daqueles gajos que sempre a fazem suspirar mas que quase sempre parecem uns paneleiros de merda perante a vida. Sempre sente um calor inusitado entre as pernas. Suspira e volta a abrir os olhos para ver as mesmas pessoas de sempre, pela última vez, até encontrar outras pessoas que voltarão a ocupar o lugar destas.

Algumas estações depois levanta-se sob o olhar atento de algumas esposas ciumentas. Se pudesse aniquilava esse abjecto sentimento nomeado de ciúme, puro egoísmo, algo que a frustra perante alguma tentativa de se aproximar de alguém, propriedade de outrem, apesar de todos nascerem sem título de pertença. Para nada, o ciúme não serve para nada e por isso mesmo meneia-se um pouco mais que o costume. Roça o rabo propositadamente num gajo de fato e gravata, de mão dada com uma gaja feia e desproporcionada para a idade. Sente-lhe a picha dura e troca um olhar que procura não passar despercebido à mulher. Ele sorri e ela cora, envergonhada, por estar morta antes do tempo e não conseguir ser despudorada o suficiente para viver em paz consigo mesma. No final não se passará nada mais, Maria voltará ao estado de transe em que estava antes e o combóio seguirá com os seus autómatos, uns mais excitados e de cara vermelha por estaladas repentinas, outros cabisbaixos em mais um dia de vida vazia.

Por um qualquer motivo alheio à sua vontade decide levantar voo. Fecha os olhos e tenta o que só nos filmes se consegue fazer. Lembra-se de um outro sonho distante em que voava rasando as linhas telefónicas e as catenárias. Quase nunca conseguia aterrar, pelo medo da mutilação, nada a fazia arriscar uma vida sem braços ou pernas.

Reabre os olhos e os pés continuam assentes no chão, literalmente. Nem sombras da estação, apenas um enorme campo a perder de vista e pessoas desvairadas para conseguir aceder a uma qualquer promoção caída do céu azul, sem  qualquer indicação de glória, apenas humilhação para as suas cabeças vazias de luta.
Que se fodam os outros, que me foda eu próprio, mas esta parte apenas Maria a contempla, enquanto s e soltam os orgasmos por nada, nem sexo, nem o prazer de apenas ver. Apenas a ganância por uns iogurtes, bolachas ou vinho das beiras do Apocalipse. Nem se trata de vendidos, é apenas mais uma forma de controlar o ódio contra quem manda fazendo-os virar-se uns contra os outros. Corre até não poder mais. Sem qualquer tipo de indicação ou motivo dispara uma arma que lhe apareceu de repente nas mãos. Pára, vira a cabeça e vê um homem a esvair-se em sangue, sorrindo. Estranha a loucura daquele sorriso, como se a vida recomeçasse a partir daquele instante, ou, simplesmente se desligasse da descida infernal dos autómatos cabisbaixos.

A contemplação dura poucos segundos. Tem que fugir, isso implica voltar a correr, cada vez mais depressa, avistando o inferno em cada esquina, alguém prestes a ameaçar o gato Serafim caso ela não se entregue. Quando pára dá-se conta que o burburinho causado pelo seu acto, não se dirige para ela. Um polícia apenas diz que tem de sair dali, que alguém importante vai passar. Sorri, gostava de se beijar a ela própria, acariciar-se com ela mesma, atingindo orgasmos impossíveis de atingir com qualquer outro ser humano. 

Uma assassina? Quem diria que a vida lhe iria reservar momentos de felicidade advindos de um acto pérfido?

A vergonha passou, ficou uma sensação de impunidade, tão do agrado de quem manda, que a levará ao mais sujo dos infernos.

Apanha um táxi, pede ao motorista para a levar para bem longe dali. Sente uma excitação que a descontrola por completo. Pede ao homem para parar, salta para a frente e começa a masturbá-lo. É um homem pequeno, barriga proeminente e ar infeliz. Chupa-lhe a picha e ele recita um qualquer salmo do Livro do Apocalipse. Vão subindo de tom os gritos dela quando lhe salta para cima, fazendo desaparecer o sexo dele dentro da sua rata a arder. Ele bate-lhe nas nádegas, chama-lhe nomes feios e ela ri-se, enquanto canta que o amor já não vive neste mundo. Prega-lhe umas quantas estaladas na cara feia e gorda. Salta e volta a saltar como se cavalgasse rumo ao céu dos orgasmos, sentindo o líquido quente que sai de dentro dele espalhar-se pela vagina, até chegar a ele.

No final sai do táxi e dispara na picha do taxista, rindo-se desbragadamente enquanto ele uiva de dor. ‘Tranquilo meu grande filho da puta, morrerás em breve e a dor acabará’. Sem que se tenha sujado segue caminho rumo à sua perdição pessoal e procura pelo Hospital onde pensa estar o homem que lhe mudou a vida. Enquanto isso entra numa perfumaria, onde um gajo se insinua, apreciando-lhe o formoso corpo com palavras vulgares e roupas ainda mais foleiras. Conseguido o objectivo da atenção do cão esfomeado, atira-se à carteira para que lhe compre o seu perfume preferido. ‘Dune’, como o filme maldito de David Lynch. Depois pensa melhor e incentiva-o a roubar, com o motivo da sua própria excitação e de como ele poderá desfrutar dos seus recantos ardentes. Como um perfeito cachorrinho de pila alçada acede. Torna-se o terceiro assassínio nas contas dela…

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

2


Numa viagem prolongada os ânimos são relegados para o valor atribuído a uma barata. Põe-se o pé em cima e esmaga-se o que passou, construindo sonhos geometricamente imperfeitos, livres do empecilho de uma rotina obrigatoriamente imposta a quem não tenha poder de decisão.

Mortimer, antigo aluno de um qualquer colégio militar não absorveu a rotina, nem os duros ensinamentos que visaram torná-lo um homem disciplinado, propenso a praticar os comuns valores da família, nomeadamente os que visam a procriação. Acrescentando ainda que sempre se esteve nas tintas para defender a pátria, pelo que se conclui que deverá ser um homem devera revoltado com o sistema. Porém as conclusões serão alheias à realidade. Tornou-se um agricultor e trata a terra com o amor próprio de quem sabe o que quer dela, soube ganhar o dinheiro suficiente para não ter que se preocupar com chefes e medos adjacentes a períodos economicamente conturbados.

Apesar da fé incutida sem qualquer alternativa, consegue ver algo mais além que a ditadura das orações impostas por homens maquiavélicos. Costuma dizer para si mesmo que convive diariamente com a aura enviada pelo espírito de Jesus a todos os que queiram fazer da vida um lugar de respeito.

Tem uma propriedade do tamanho de um estádio de futebol, sem nada que impeça a vista, que complique o que tem de ser feito e acima de tudo onde a inter-acção existente entre todos os que lá trabalham funcione como um motor em que todos os componentes, cada um com as suas especificidades, funcionem como algo perfeito. A chave do sucesso é a natural imperfeição da natureza humana.

O sistema apenas lhe interessa para produzir o que necessita, nunca pagou qualquer tipo de imposto e o seu nome consta numa lista especial dos serviços secretos dedicada a identificar potenciais terroristas os quais devem ser vigiados com a máxima prioridade pela influência perniciosa que possam ter no negócio do ambiente cujos tentáculos estão perfeitamente definidos e organizados. Por estar na alçada do poder tornou-se intocável, algo venenoso e que revela os cuidados postos por quem tem o verdadeiro poder de decisão nas mãos.

Dentro daquele pequeno mundo, ainda existem as quatro estações e as ramificações tendem a espalhar-se apesar das hostilidades.

Presume-se que seja inglês. A idade ninguém a sabe ao certo, apenas aparenta uma pujança física encontrada na descrição feita dos deuses da antiga humanidade.

Neste preciso momento está de viagem, disfarçado de homem simples da cidade, uma daquelas baratas anónimas que apenas servem para esmagar e voltar a nascer para voltar a esmagar. O sorriso que exibe é contrastante com a pose que demonstra a quem a queira ver.

Como muitos outros, que se desconhecem entre si, parte em busca de um fim definido. É certo que a sua ausência da propriedade nunca será sentida pelos de fora. Os de dentro apenas compensam a partida com o necessário redobrar de esforços, sabendo que terão de percorrer o mesmo caminho assim que entendam o que devem fazer com a sua vida.

Fala-se do demónio à solta pelo mundo. Mortimer apenas consegue cantar uma canção neurótica que afaste da sua mente se dele de quem falam. Como todos também é imperfeito e a aura celestial do mais profundo de todos os humanos parece ser o combustível necessário para fazer mover uma vida cujo sentido não está mais além.

Antes que o corpo envelheça irremediavelmente é preciso encontrar esse sítio, pessoa ou coisa que encaixe no que se propôs encontrar.

Ao seu lado dorme uma mulher de traços suaves e corpo aparentemente atraente. Volta a olhar para a frente e pensa que aquelas montanhas que se perdem no horizonte, também elas estão impregnadas desse característico odor feminino que há muito tempo os seus sentidos não entranham.

No autocarro quase todos dormem, talvez nem haja ninguém a conduzi-lo, como se a aura que circunda Mortimer fosse o suficiente para levar as almas, reencontradas com os corpos, ao porto de abrigo que buscam a vida toda sem saber como o fazer.

Os ânimos, esmagou-os como um insecto indesejado. Recomeçar significa trazer à tona apenas o essencial para colocar em prática projectos sempre pendentes: a felicidade e uma vida normal. Ao pensar nisto, volta a sorrir, sabe que é uma parvoíce renegar todo o passado, que aquela aprendizagem toda pela qual passou o tornou no homem que é hoje, apesar da comum sociedade não querer saber dessa coisa da felicidade e da vida normal, não há tempo a perder.

Ao longe estão as mesmas montanhas, um qualquer vulto que arde impaciente por um fim decente.

Do céu talvez caia algo que mude a vida, mas nunca será prudente apenas olhar, sem insistir na sabedoria acumulada dos deuses que até podem ter aparência humana e desejos, imagine-se!

Entretanto a viagem acaba. A mulher que estava ao seu lado, segue o mesmo trajecto do seu corpo, abusando os 2 de um sorriso, nem cúmplice, nem amarelo. Após alguns minutos ela encontra o respectivo macho a quem beija efusivamente, continuando a sorrir sem gosto e a olhar para Mortimer por cima do ombro do dito cujo. Ela apenas segue rumo ao desejo de percorrer o fim a que se propôs.

Os olhos pesam do extremo cansaço e ao atravessar a rua quase que é atropelado, sendo brindado com uma colecção requintada de palavrões do condutor assustado. Impassível e seguro de ser intocável brinda o sujeito com o desprezo necessário à persecução dos seus desejos.

Na rua principal de um sítio estranho toca uma canção vinda do nascimento de uma frustração aguda que cumpre o efeito de fazer sentir quem a escuta um ser frustrado. Mortimer apesar de frustrado, apenas ignora a suposta dor de quem não disfruta o que tem e olha intrigado para uma rapariga que vê caminha no outro lado da rua. Segue, com um inusitado aperto no coração, por uma vez inseguro dos seus propósitos num mundo em que a incerteza é a principal arma dos maquiavélicos que pretendem um mundo sujo à sua imagem, nitidamente distorcida.

Não é possível que se deixe tomar pela ira ou pela apatia, o caminho a percorrer já é suficientemente duro para perder tempo com parvoíces que podem criar atritos desnecessários.

Mortimer está excitado com tudo o que desconhece e o pode brindar de forma violenta a qualquer momento. Ainda assim pensa na mulher que viu e resolve voltar à rua onde a vira. Talvez seja um mero impulso, uma decisão que não lhe traga nada de novo, porém voltou-se para trás e ela ainda lá estava, junto da outra fêmea, agora mais tranquila. Olhou para mais longe e parecia não haver mais mundo, como se fosse um deus a criar os desejos e as consequências num mundo em permanente convulsão, catapultando cada ser para uma via dúbia que podia mudar entre cada inspiração e expiração.

Ainda olha para aquele trio. De repente sentiu uma necessidade premente de os conhecer. Aniquila qualquer tipo de medo e nem sente uma faca entrar-lhe pelo corpo dentro. A sensação do líquido quente a escorrer incomoda-o fazendo-o olhar para a barriga de um vermelho vivo em crescente quantidade. Do outro lado alguém apercebe-se que um homem foi vítima de um assalto violento e começam a gritar. Mortimer começa a sentir-se mal, apesar da estranha ausência de dores. Não consegue ir mais além que a berma do passeio onde se encontra. Cai estatelado no chão e depressa se vê rodeado de gente. Parece-lhe ouvir a mulher que ia ao seu lado na viagem. Um sorriso e a espera por algum tipo saído de alguma luz brilhante deixam-no curioso. A morte, às vezes, é um meio de começar a viver na dimensão que realmente interessa. Mas não é a morte de algum emissário vindo da luz que ele vê, são os socorristas que ao chegarem afastam tudo e todos para o seu natural buraco negro de ombros descaídos. Volta a sorrir, desta vez porque tem dores. Tratam de estabilizá-lo e colocam-no em cima de uma maca, com tubos e parafernálias que preferia absorver de outra maneira.

Do outro lado da rua apenas há um abismo que ele já não consegue decifrar. Agora vai a caminho de uma urgência hospitalar. Perto de si um ser meio alucinado pergunta-lhe algo acerca do que se passou. Os enfermeiros dizem que o efeito da morfina já é mais forte que a lucidez e o sentido das palavras esvai-se.
Volta a sorrir, parece estar rodeado pelo trio que vira do outro lado da rua e pede que se aproxime quem o interroga ali na ambulância.

Pelo caminho não há obstáculos, a polícia fechou todas as ruas e começou uma caça ao homem. Quer dizer, apesar da informação das secretas que Mortimer estava melhor assim era necessário abater o assassino a soldo, apenas para manter as aparências bem oleadas.

Depressa chegarão ao hospital onde se encontra o emissário vindo da luz, que Mortimer desconhecerá em absoluto, pelo menos desta vez. Entretanto adormece, sem dores e com as trevas acentuadas num pesadelo sempre passado na descida íngreme para uma praia, acompanhada de um oceano furioso que o engolirá impiedosamente. Nesse sonho aparece um negro altíssimo com uma catana na mão. De repente começa a dançar uma daquelas canções de movimentos acentuadamente gay e baixa as calças a Mortimer. Então acorda aos gritos, mas ninguém ouviu nada e volta a ver um negro altíssimo a mudar-lhe o soro enquanto cantarola algo indecifrável. Adormece de novo enquanto sente que algo se passa na barriga, talvez um corte, talvez a sorte que todos os que o rodeiam são os que com ele trabalham, apesar de não se lembrar de negros com catanas ou mulheres de olhar felino a atacar a sua líbido com os seus corpos ainda sensuais para a vista e para o corpo sedento de sexo e absoluta normalidade isenta de impostos absurdos.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

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O dia começa com uma aura negativa que silencia os pássaros da árvore em frente à casa. É preciso entender as rimas de um sonho recorrente em que o desprezo das multidões se sobrepõe às tentativas ritmadas de convívio. Apenas se fala da distância de quem possa incomodar um qualquer negócio ilícito que move tostões e que repartido por todos não incomoda ninguém. Urge encontrar a função precisa do intelecto de cada um de forma a sublimar as potencialidades subjacentes ao que quase ninguém se empenha em praticar: a ajuda desinteressada a quem se ama.

Os sorrisos constantes de Maria durante o dia não podem ser uma dicotomia maior em relação ao início dos dias frios da sua alma. É possível que seja uma cínica num perfeito esconderijo feito de teias perfeitas de onde não consegue escapar com a vida necessária. Outras vezes, em banhos prolongados de puro prazer, acrescidos pela masturbação com que sacia a sua vagina em ardente tentação, procura entender o porquê de não conseguir atingir essa fonte inesgotável de prazer com um homem que simplesmente a deseje. Outras vezes apenas se deixa ir num sonho repleto de estímulos visuais, numa tentação em que apenas a alma funciona e o corpo se reduz à sua natural insignificância.

Maria está desempregada em tempo de crise, sobretudo emocional. Tem projectos a curto prazo que espera ver concretizados, enquanto resiste à tentação de entrar naquelas lojas de roupa onde vá consumir a frustração de um dia-a-dia sem a mais pequena ponta de tesão. De vez em quando olha para o espelho, esperando ver um qualquer fluxo de energia que reduza a sua ansiedade ou simplesmente a leve para a dimensão em que nasceu homem e não tem problemas com o sangue que sai do seu corpo mês após mês. Ainda se pudesse ver realizado o sonho de uma gravidez sem riscos, sentir uma vida crescer dentro de si sem que depois tivesse que a ensinar a ser ainda mais cínica que ela, então produzir-se-ia o milagre dos dias normais, em que o silêncio dos mortais aninhados na sua insignificância seria substituído por enchentes de vida e entendimento implícito.

Quando se senta para tomar o pequeno-almoço, o gato Serafim esfrega-se nas suas pernas nuas, fazendo-a lembrar-se que também ele tem as suas necessidades vitamínicas para dormir melhor o resto do dia. É sempre motivo para deixá-lo subir ao seu colo, enquanto come as torradas quentes, cobertas de uma manteiga especial para emagrecer. E ela tem o peso certo mas gosta de se deixar ir na onda das campanhas dietéticas anti-qualquer coisa, sobretudo do equilíbrio da carteira, porém assim fica feliz.

O gato ronrona enquanto espera pacientemente pela colisão de um pitéu com os seus dentes regularmente afiados. Oportunista e fiel amigo de Maria, que sempre o levará onde quer que vá viver.

Quando vai à janela, encontra-se com o vento na sua cara ainda sem rugas e delicia-se com o frio que rapidamente se entranha no seu corpo. Todos os dias há pedaços de rotina que teima em não mudar, apesar do frio e do calor a encontrarem em dias menos certos que antigamente. Às vezes quase que sente os pés acima do nível do chão, subindo ao encontro dos anjos que a guiam sem que se dê conta da sua presença. Quando, alguns segundos depois, vai buscar a roupa para vestir, desce à Terra e aos propósitos de uma vida cujo fim tem previsto acelerar.

No momento das decisões fecha-se num casulo, sem sequer se preocupar se no mundo para além da vida poderá encontrar esses prazeres carnais que tanto a desesperam quando não os tem. Apenas deixar-se ir na pompa de uma circunstância que precisa atravessar, para não correr o risco do fracasso subjacente à linha imaginária que todos os seus familiares teimam em passar, encontrando a loucura de braços abertos para depois nunca mais a largarem.

Maria tem o seu quê de fé, da crença no Pai de tudo e dos guias do bem e do mal que sempre justificam todos os actos. Não sendo fanática acredita que algumas pessoas têm dons especiais de indicar caminhos correctos e fazer o corpo seguir os caminhos da alma, por mais ínvios que possam parecer. Esse foi um dos motivos que a levou a deixar a sua vida regrada e rotineira, para que possa viver num mundo em que os meios e os fins convivem sem ter a necessidade de foder o próximo.

Sorri, enquanto pensa que o fim desejado se aproxima.

Segue a rotina habitual, enquanto os minutos parecem demorar um pouco mais que o costume. É natural que não esteja feliz de todo, livrou-se do empecilho que lhe dava tranquilidade, mas não alcançou o amor que lhe trave a fuga para outra dimensão. Quer dizer, sendo as mulheres mais conservadoras no que diz respeito à mudança geográfica, Maria teima em não querer esperar, deixando a porta aberta para quem quiser entender o seu próximo passo. E o cansaço dessa espera é tanto que prefere preencher as futuras rugas com algumas experiências que as estiquem quando nada as possa dissimular mais.

Não deixa de ser uma contradição buscar um fim e pensar na doçura possível da própria velhice. Apenas urge mover o corpo rumo àquilo para que foi feito, usar o dinheiro apenas para fazer sobreviver os gostos e as necessidades básicas. Afinal sempre se dispõe a partir em busca da cidade da alegria, onde os pobres só o são quando o espírito quebra.

Depois de dar os últimos retoques na maquilhagem e de apanhar o cabelo excessivamente comprido, pega no Serafim e fala-lhe do que vai ser o seu dia, em tons de enigmas que decifrará à medida que as nuvens forem passando e o ar se tornar rarefeito em sítios insuspeitos. Quando em larga em cima da cama despede-se da comiseração a que se sujeitou durante alguns anos. O gato parece estar-se nas tintas dando o costumeiro miado assim que ela sai do quarto.

Dirige-se para a porta, que nunca fecha à chave, ajeita uma vez mais o cabelo e de olhar vazio despede-se uma vez mais de uma manhã rotineira e sem sabor. Sabe que ao passar aquela porta, vai dar início a uma etapa da vida que não sabe onde vai parar.

O gato adormeceu de novo e ainda assim parece estar tudo bem.

Maria vive no sétimo andar de um prédio embutido no meio de muitos outros, cinzento da sujidade, deixando a nu as energias negativas de um ar excessivamente pesado para as preocupações ligeiras com que a dilacerada classe média assiste à progressiva delapidação dos seus direitos e dinheiro que entrarão directamente na pança dos ladrões do costume.

Fecha a porta, sai para o mundo, vestida em tons alegres, propositadamente contrastantes com os demónios circundantes.

A magia de alguns momentos perde-se sem que Maria se dê conta. Fechou a porta de casa, com Serafim olimpicamente indiferente ao mundo que a sua dona quer ver desbravado.

A vizinha do lado abriu a porta, disse algumas palavras quase imperceptíveis e a cabeça implodiu, ficando uma casca de noz no seu lugar, com um corpo atarantado, como se de um zombie se tratasse. Apenas lhe deu um encontrão, fechou-lhe a porta e já está tudo bem outra vez.

O alarme devia ter tocado, no seu lugar apenas uma imagem possivelmente carregada de símbolos que terá de decifrar num qualquer momento de aperto, em que nada segura. Sorri, quase rindo desbragadamente pela ideia de vacas na mesma situação.

Desce apressadamente as escadas, espera que a cabeça da vizinha não se tenha materializado de novo. 

Escuta passos, sem sabem se vão ou vêm, isso não é motivo para os músculos paralisarem e as sementes virem rotuladas de estéreis, porém os dias são mais curtos e a noite abdicou de ser boa conselheira, ou sequer de sugerir um mero suspiro de alívio por uma qualquer desgraça amanhecida num corpo sequioso.

Maria quer foder, pensando que o amor que a devia consumir, um dia sairá do armário, isso não lhe consome a fome de maneira nenhuma.

Toca uma canção neurótica na sua cabeça. Nunca se preocupou com a tensão, mas agora que lhe falam que tudo se paga, esteja ou não sujeito a tributação, vai ter um pouco mais de atenção às descargas eléctricas naturais, para que possa assistir a um dos muitos holocaustos prometidos num vão de escada, enquanto alguns abutres consomem pedaços mortos de vontade.

Na rádio, que nunca leva, há-de estar a tocar o hit do momento e a dor da sua ausência será nula, como a vontade de deixar o seu corpo passar incólume ao vendaval a que se propôs.

Maria vive num país de oportunidades em falência, onde é vigiada a cada momento pelos arautos da moralidade, como todos os outros que a rodeiam. Abre então a porta da rua e depara-se com o habitual carreiro de formigas, devidamente ordenadas, rumo ao encontro da sua subsistência. Em frente, um amontoado de carros aniquilam a vista para as ainda frondosas árvores que alimentam o desejo de algum meliante as escalar para depois descer na varanda de vizinhos que abrem a porta a toda a gente.

Segue pelas pedras irregulares de um passeio mal cuidado. Lá em cima, o tempo dança sem concertina ao sabor de um Sol que promete aquecer os dias e os ânimos.