Numa viagem prolongada os ânimos
são relegados para o valor atribuído a uma barata. Põe-se o pé em cima e
esmaga-se o que passou, construindo sonhos geometricamente imperfeitos, livres
do empecilho de uma rotina obrigatoriamente imposta a quem não tenha poder de
decisão.
Apesar da fé incutida sem
qualquer alternativa, consegue ver algo mais além que a ditadura das orações
impostas por homens maquiavélicos. Costuma dizer para si mesmo que convive
diariamente com a aura enviada pelo espírito de Jesus a todos os que queiram
fazer da vida um lugar de respeito.
Tem uma propriedade do tamanho de
um estádio de futebol, sem nada que impeça a vista, que complique o que tem de
ser feito e acima de tudo onde a inter-acção existente entre todos os que lá
trabalham funcione como um motor em que todos os componentes, cada um com as
suas especificidades, funcionem como algo perfeito. A chave do sucesso é a
natural imperfeição da natureza humana.
O sistema apenas lhe interessa
para produzir o que necessita, nunca pagou qualquer tipo de imposto e o seu
nome consta numa lista especial dos serviços secretos dedicada a identificar
potenciais terroristas os quais devem ser vigiados com a máxima prioridade pela
influência perniciosa que possam ter no negócio do ambiente cujos tentáculos
estão perfeitamente definidos e organizados. Por estar na alçada do poder
tornou-se intocável, algo venenoso e que revela os cuidados postos por quem tem
o verdadeiro poder de decisão nas mãos.
Dentro daquele pequeno mundo,
ainda existem as quatro estações e as ramificações tendem a espalhar-se apesar
das hostilidades.
Presume-se que seja inglês. A
idade ninguém a sabe ao certo, apenas aparenta uma pujança física encontrada na
descrição feita dos deuses da antiga humanidade.
Neste preciso momento está de
viagem, disfarçado de homem simples da cidade, uma daquelas baratas anónimas
que apenas servem para esmagar e voltar a nascer para voltar a esmagar. O
sorriso que exibe é contrastante com a pose que demonstra a quem a queira ver.
Como muitos outros, que se
desconhecem entre si, parte em busca de um fim definido. É certo que a sua
ausência da propriedade nunca será sentida pelos de fora. Os de dentro apenas
compensam a partida com o necessário redobrar de esforços, sabendo que terão de
percorrer o mesmo caminho assim que entendam o que devem fazer com a sua vida.
Fala-se do demónio à solta pelo
mundo. Mortimer apenas consegue cantar uma canção neurótica que afaste da sua
mente se dele de quem falam. Como todos também é imperfeito e a aura celestial
do mais profundo de todos os humanos parece ser o combustível necessário para
fazer mover uma vida cujo sentido não está mais além.
Antes que o corpo envelheça
irremediavelmente é preciso encontrar esse sítio, pessoa ou coisa que encaixe
no que se propôs encontrar.
Ao seu lado dorme uma mulher de
traços suaves e corpo aparentemente atraente. Volta a olhar para a frente e
pensa que aquelas montanhas que se perdem no horizonte, também elas estão
impregnadas desse característico odor feminino que há muito tempo os seus
sentidos não entranham.
No autocarro quase todos dormem,
talvez nem haja ninguém a conduzi-lo, como se a aura que circunda Mortimer
fosse o suficiente para levar as almas, reencontradas com os corpos, ao porto
de abrigo que buscam a vida toda sem saber como o fazer.
Os ânimos, esmagou-os como um
insecto indesejado. Recomeçar significa trazer à tona apenas o essencial para
colocar em prática projectos sempre pendentes: a felicidade e uma vida normal.
Ao pensar nisto, volta a sorrir, sabe que é uma parvoíce renegar todo o
passado, que aquela aprendizagem toda pela qual passou o tornou no homem que é
hoje, apesar da comum sociedade não querer saber dessa coisa da felicidade e da
vida normal, não há tempo a perder.
Ao longe estão as mesmas
montanhas, um qualquer vulto que arde impaciente por um fim decente.
Do céu talvez caia algo que mude
a vida, mas nunca será prudente apenas olhar, sem insistir na sabedoria
acumulada dos deuses que até podem ter aparência humana e desejos, imagine-se!
Entretanto a viagem acaba. A
mulher que estava ao seu lado, segue o mesmo trajecto do seu corpo, abusando os
2 de um sorriso, nem cúmplice, nem amarelo. Após alguns minutos ela encontra o
respectivo macho a quem beija efusivamente, continuando a sorrir sem gosto e a
olhar para Mortimer por cima do ombro do dito cujo. Ela apenas segue rumo ao
desejo de percorrer o fim a que se propôs.
Os olhos pesam do extremo cansaço
e ao atravessar a rua quase que é atropelado, sendo brindado com uma colecção
requintada de palavrões do condutor assustado. Impassível e seguro de ser
intocável brinda o sujeito com o desprezo necessário à persecução dos seus
desejos.
Na rua principal de um sítio
estranho toca uma canção vinda do nascimento de uma frustração aguda que cumpre
o efeito de fazer sentir quem a escuta um ser frustrado. Mortimer apesar de
frustrado, apenas ignora a suposta dor de quem não disfruta o que tem e olha
intrigado para uma rapariga que vê caminha no outro lado da rua. Segue, com um
inusitado aperto no coração, por uma vez inseguro dos seus propósitos num mundo
em que a incerteza é a principal arma dos maquiavélicos que pretendem um mundo
sujo à sua imagem, nitidamente distorcida.
Não é possível que se deixe tomar
pela ira ou pela apatia, o caminho a percorrer já é suficientemente duro para
perder tempo com parvoíces que podem criar atritos desnecessários.
Mortimer está excitado com tudo o
que desconhece e o pode brindar de forma violenta a qualquer momento. Ainda
assim pensa na mulher que viu e resolve voltar à rua onde a vira. Talvez seja
um mero impulso, uma decisão que não lhe traga nada de novo, porém voltou-se
para trás e ela ainda lá estava, junto da outra fêmea, agora mais tranquila.
Olhou para mais longe e parecia não haver mais mundo, como se fosse um deus a
criar os desejos e as consequências num mundo em permanente convulsão,
catapultando cada ser para uma via dúbia que podia mudar entre cada inspiração
e expiração.
Ainda olha para aquele trio. De
repente sentiu uma necessidade premente de os conhecer. Aniquila qualquer tipo
de medo e nem sente uma faca entrar-lhe pelo corpo dentro. A sensação do
líquido quente a escorrer incomoda-o fazendo-o olhar para a barriga de um
vermelho vivo em crescente quantidade. Do outro lado alguém apercebe-se que um
homem foi vítima de um assalto violento e começam a gritar. Mortimer começa a
sentir-se mal, apesar da estranha ausência de dores. Não consegue ir mais além
que a berma do passeio onde se encontra. Cai estatelado no chão e depressa se
vê rodeado de gente. Parece-lhe ouvir a mulher que ia ao seu lado na viagem. Um
sorriso e a espera por algum tipo saído de alguma luz brilhante deixam-no
curioso. A morte, às vezes, é um meio de começar a viver na dimensão que
realmente interessa. Mas não é a morte de algum emissário vindo da luz que ele
vê, são os socorristas que ao chegarem afastam tudo e todos para o seu natural
buraco negro de ombros descaídos. Volta a sorrir, desta vez porque tem dores.
Tratam de estabilizá-lo e colocam-no em cima de uma maca, com tubos e
parafernálias que preferia absorver de outra maneira.
Do outro lado da rua apenas há um
abismo que ele já não consegue decifrar. Agora vai a caminho de uma urgência
hospitalar. Perto de si um ser meio alucinado pergunta-lhe algo acerca do que
se passou. Os enfermeiros dizem que o efeito da morfina já é mais forte que a
lucidez e o sentido das palavras esvai-se.
Volta a sorrir, parece estar
rodeado pelo trio que vira do outro lado da rua e pede que se aproxime quem o
interroga ali na ambulância.
Pelo caminho não há obstáculos, a
polícia fechou todas as ruas e começou uma caça ao homem. Quer dizer, apesar da
informação das secretas que Mortimer estava melhor assim era necessário abater
o assassino a soldo, apenas para manter as aparências bem oleadas.
Depressa chegarão ao hospital
onde se encontra o emissário vindo da luz, que Mortimer desconhecerá em
absoluto, pelo menos desta vez. Entretanto adormece, sem dores e com as trevas
acentuadas num pesadelo sempre passado na descida íngreme para uma praia,
acompanhada de um oceano furioso que o engolirá impiedosamente. Nesse sonho
aparece um negro altíssimo com uma catana na mão. De repente começa a dançar
uma daquelas canções de movimentos acentuadamente gay e baixa as calças a
Mortimer. Então acorda aos gritos, mas ninguém ouviu nada e volta a ver um
negro altíssimo a mudar-lhe o soro enquanto cantarola algo indecifrável.
Adormece de novo enquanto sente que algo se passa na barriga, talvez um corte,
talvez a sorte que todos os que o rodeiam são os que com ele trabalham, apesar
de não se lembrar de negros com catanas ou mulheres de olhar felino a atacar a
sua líbido com os seus corpos ainda sensuais para a vista e para o corpo
sedento de sexo e absoluta normalidade isenta de impostos absurdos.
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