segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

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O novo Inferno de Dante

Mortimer escapou por pouco da morte, de uma galopante loucura e das surpresas causadas pelo sangue a jorrar do seu corpo. Está no hospital, algemado, sem saber exactamente porquê e com um amulher atraente a fazer-lhe perguntas. Tem um tom de voz seco, a contrastar com a doçura que parece sair dos seus lábios, perfeitos. Não, não se deixa enganar a mulher não foi ali fazer jogos eróticos, tem que escutá-la, entender o porquê do que se passou até chegar ali.

Algemado. Sente-se com curiosidade de saber o porquê de tudo o que se passou até chegar ali.

Algemado. Sente-se com curiosidade de saber se é por causa de ter reintroduzido as quatro estações no mundo enquanto entranhava as Quatro Estações de Vivaldi.

  • Não meu caro Mortimer, - diz-lhe, fleumática, a sensual agente da polícia que interroga
  • Você é perigoso demais porque põe em prática os seus sonhos.

Então está algemado pelos sonhos, por querer praticar a liberdade de movimentos, o que significa que tudo deixou de ser uma mera teoria da conspiração, para o simples facto de confirmar que sempre o vigiaram.

  • Sim, senhora, fui esfaqueado e sou eu que estou aqui preso... talvez se me explicasse... - olhando directamente para aqueles olhos vazios, como se não houvesse alma para os segurar.
  • Não importa explicar-lhe que sabemos quem foi, é matéria confidencial e o assunto morre aqui, isto tudo apesar de saber que você é imune à morte.

Mortimer reagiu com alguma agressividade e a mulher fez um sinal para fora do quarto. Alguns momentos depois apareceram dois homens, exactamente iguais, pela óptica de Mortimer. Tomaram o seu lugar, cada um de um lado da cama e a agente, fria como um glaciar, pegou num pente, levou-o à cabeça de Mortimer e deu-lhe uso. Ele ficou calado, aceitando as mudanças de humor na fulana. Os homens cantarolavam uma versão a capella de «unfinished sympathy», a coisa tornava-se ainda mais solene quando a vocalista original apareceu, em ponto minúsculo, em cima da cama de Mortimer.

Mortimer deixou de querer ser diferente, a sucessão de idiotices que têm acontecido, fazem com que apenas queira voltar para a sua quinta auto-sustentável. Refugia-se no silêncio e os três personagens misteriosos esfumam-se por entre as paredes, deixando o homem entregue a uma lenta e dolorosa recuperação.

Volta então ao silêncio, sem ninguém no quarto. Completamente nu, com a ferida a descoberto e uma comichão louca que o provoca a rasgar os pontos só para ver o sangue escorrer livre. Mas não consegue, tem apenas de se concentrar. Possivelmente se o fizer com afinco é provável que tudo nem passe de um sonho, com desfecho infeliz, porque não consegue morrer. Apenas consegue entender que o delírio se limita à parte da roupa, o resto é apenas uma teia intrincada de acontecimentos que o farão ir às portas do inferno, onde se revelará toda a sua força, ainda adormecida. Sabe de tudo isso, sem saber como, mas sabe que vai sair deste quarto para um mundo diferente, despejado da rotineira normalidade, sem a tranquilidade dos que conseguem controlar a selvajaria latente nos cérebros domesticados.

Mortimer é um paciente agitado e por isso coloca-se a possibilidade de um colete-de-forças que impeça os seus braços de mudar alguma coisa no pequeno espaço ocupado pelo seu corpo. É por isso que precisa acalmar-se, deixar a enfermeira gorda e feia fazer o seu serviço com dedicação e sorrisos sexualmente alterados. O mundo, nisso, parece uma cassete riscada, onde se sublimam os corpos em detrimento das almas, apesar da igual perecidade destas.

Voltando mais atrás, lembra-se que havia um colégio, com regras duras e em que a manifestação de qualquer tipo de emoções eram motivo para valentes enxertos de porrada. A alternativa era sempre a mesma, dar cem voltas ao gigantesco edifício com o espírito enredado numa teia de loucura inimaginável, acompanhado das «litanies de Satan», vociferadas por uma grega tresloucada que tinha como objectivo denunciar a raça humana perante o anjo caído. Mortimer experimentara as duas vertentes de tortura e no final da nonagésima volta, seguiu em frente rumo a outro tipo de existência, feita de vontade própria e com pessoas carregadas de tesão pela vida.

Voltando ao presente descobriam-se novas formas de tortura com o anúncio de novos cortes na saúde, pelo governo em pose de punheta autoritária a ponto de expelir algo feio.

Resulta disto tudo que Mortimer vai sair do hospital hoje mesmo, apesar das indicações de repouso absoluto. Antes de sair passará pela cozinha e levará a faca de cortar carne. Passará pelo gabinete do Dr. Morte e enfiará o instrumento cortante pela cabeça abaixo. Diz-se que o vetusto médico já passou por pior, rezando a lenda que detém um recorde macabro de facadas que nunca atingiram um orgão vital.

Mortimer fez o que queria e saiu para a rua, vestido com a bata branca algo manchada de sangue. Sente-se mal, as dores superaramn o êxtase de loucura que o acometeram antes do desastre.

Por todo o lado depara-se com pessoas iradas, raiando um vermelho brutal dos olhos quase a saírem das órbitas. O Céu está negro e os motores destruídos dos aviões antigos sobrepôem-se às bombas lançadas em simultâneo, suspensas num tempo que deixou de seguir como sempre seguiu. Os plícias, de arma em punho, dão uso a um megafone, aconselhando os seguidores do governo a descerem pelos tampos do esgoto. Dizem eles que apesar das doenças e do cheiro nauseabundo um mundo melhor os espera, Mortimer procura o caminho de volta para a quinta. Pensa ele que enquanto as bombas se mantiveremk em suspenso tudo é possível e o mundo até pode acabar aos abraços, num bar irlandês, com cerveja preta a rodos para todos.

Anda, cada vez com mais dificuldade, tenta abstrair-se dos seres que vão descendo pelo esgoto, em poses de desespero teatral, quando a vida é bastante mais profunda que seguir as pisadas de um qualquer pastor com dons de domar carneiros.

Procura pelo amor que possa estar nos que o rodeiam. Enquanto isso as velas no cimo de cada edifício vão ardendo, consumindo a beleza dos anjos, desnorteados pelo trabalho sujo dos demónios.

À sua volta apenas pessoas abstraídas da sua vontade própria. Talvez a dor aumente por causa disso. O ser humano de tanta possibilidade que lhe é posta ao dispor para ser feliz, procura sempre a alegria nos espinhos putrefactos que alguns iluminados lhes destinam, sendo, por isso, conduzidos ao esquecimento.

Vão todos em fila para o esgoto, que lhes traz a ilusão de algum descanso da violentação a que sempre os sujeitaram, dizendo-lhes que se querem ser felizes tem de ser pela vontade imposta por lei. Mortimer pratica o oposto, mas só demonstra o caminho certo a quem se dispuser a usar a visão para aquilo que ela serve. À sua volta, começam a aparecer algumas pessoas, em silêncio, sorrindo-lhe. Os pensamentos transmitem-se naturalmente e os fluídos geram a energia positiva necessária para criar uma barreira aos demónios tresloucados que tentam demover, sem êxito, os caminhantes da normalidade alternativa ao governo prepotente.

Os olhares cruzam-se, as vidas são o que quiserem fazer delas, mas junto de Mortimer apenas há a vontade de chegar à quinta antes que o tempo volte ao seu curso normal e as bombas comecem a sua função destruídora.

Um pouco mais à frente, num sítio qualquer, encontram um animado grupo de demónios que vão lançando, todos os incautos que podem, em abismos sem fundo. Afirmam eles tratar-se de uma promoção especial em que todos se livrarão dos problemas crónicos que reinam nas suas vidas. E afiançam ainda que quem entrar primeiro beneficiará de uma surpresa inesquecível.

Mortimer e os seus crfescentes seguidores seguem em frente, com a mesma dor de não poder haver cura para tantas almas em combustão. Dor essa facilmente compensada a cada novo seguidor que se junta à celebração da vida, em que cada um faz o que quer sem ter de lembrar-se que, sendo o topo da cadeia alimentar, não tem de usar essa celebração para destruir o mundo que lhe foi oferecido para viver. Ele sabe que esse é um desejo fragilizado pelo ódio, a que não consegue fugir, apenas esquecê-lo em prol de um qualquer paraíso que sirva para esquecer a destruição.

Em cada bomba suspensa, arde uma traição de cada ser perecido e enviado para os fossos do anjo Lúcifer. O ódio é sempre crescente e os anjos não conseguem abrandar essa loucura, terão de ser alguns escolhidos a fazê-lo, com a natural tendência de alguns para mandar e de quase todos para serem soldados.

O ideal seria viver noutro mundo, deixar as bombas cair e seguir à mesma para a mística quinta, que não deverá passar de uma mera fata morgana.










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